Entrevista com Clarice Lispector
Entrevista exclusiva para o blog Estação da Palavra.
Ok. As perguntas são imaginárias, mas as “respostas” são verdadeiras. Acredite: dela mesma! Essas “respostas” são declarações esparsas concedidas em entrevistas e, principalmente, nas crônicas que ela escrevia para os jornais. Nas crônicas, Clarice expunha, sem querer, a vida pessoal, fato que a atormentava, mas que felizmente, hoje, nos ajuda a lançar luzes sobre sua vida e sua obra.
Mãe do Brasil, escrivã paciente, simples, complexa, intuitiva, mística, misteriosa, hermética, mito. Afinal, quem é mesmo Clarice Lispector, a encantadora esfinge da literatura brasileira?
Por que você escreve?
Engraçado, eu fiz essa mesma pergunta a Robbe-Griller quando ele veio ao Brasil. Me respondeu: ‘Eu escrevo para saber que escrevo’. Minha resposta é diferente. Eu escrevo para entender melhor o mundo. E acho que escrevendo a gente entende mais um pouquinho do que não escrevendo. É uma lucidez meio nebulosa, porque a gente não tem direito consciência dela.
Ás vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fio consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.
Você prefere escrever contos ou romances?
Acho que faço mais bem-feito o conto. Mas me interessa mais o romance. Só o romance me dá a sensação de saciedade, de esgotamento.
Como você inicia seus romances?
Eu sempre começo tudo como se fosse pelo meio. Deus me livre de começar a escrever um livro pela primeira linha. Eu vou juntando notas. E depois vejo que umas têm conexão com as outras, e aí descubro que o livro já está pelo meio.
Mas como faz a primeira frase?
Não se faz uma frase. A frase nasce.
Antes de escrever, você sabe de antemão como será seu texto?
Eu nunca sei de antemão o que vou escrever. Tem escritores que só se põem a escrever quando têm o livro todo na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria.
Como se dá o seu processo de inspiração?
Ás vezes, elaboro um trabalho durante anos, sem sentir. O único sintoma são as frases que me vêm de repente, já prontas, no táxi, no cinema ou no meio da noite, revelando que algo está crescendo em mim. Mas , ao contrário do que muitos pensam, não escrevo em transe e não sinto sem nenhum espírito me insuflando idéias. A inspiração vem dessa longa elaboração inconsciente. Escrever, para mim, é um aprendizado. Assim como viver é um aprendizado.
Alguns escritores pesquisam fatos e personagens antes de escrever. Você faz isso?
Eu já disse que só trabalho sob inspiração. Não sei me comandar. Nada em mim é premeditado. Se houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho. Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão do conjunto, mas isso é coisa de um momento, que, depois, se perde. A dificuldade é recompor tudo. E começar a escrever.
Como faz para que a inspiração não fuja?
Vou tomando notas. Às vezes acordo no meio da noite, anoto uma frase e volto para a cama. Sou capaz de escrever no escuro, num cinema, meu caderninho sempre na bolsa. Depois eu mesma tenho dificuldade de decifrar minha letra. Mas é assim. Desde o primeiro livro. Eu tinha uma porção de notas, não sabia direito o que fazer com elas. Lúcio Cardoso me disse, então: ‘Se todas as notas são sobre um mesmo tema, você tem o livro pronto.’ E assim foi.
O que é mais importante: inspiração ou transpiração?
Eu creio na inspiração e creio no trabalho.
Você costuma rasgar seus textos?
Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha empregada, por exemplo, tem ordem de deixar qualquer pedacinho de papel com alguma coisa escrita lá como está.
Você pensa no leitor na hora de escrever?
Quando trabalho, não penso em mim nem em meu leitor. As idéias me vêm puras e, uma vez formadas, como uma criança que nasce, dou-lhes inteira liberdade.
Você se considera uma escritora hermética?
Todos me consideram uma escritora hermética. Mas, se a criança entende minha linguagem, por que o adulto me acha difícil de ler? Mas confesso que, se eu não fosse eu, não teria prazer em me ler.
Quais os escritores que influenciaram a sua escritura?
Não sei dizer que autores influíram no que eu escrevi ou na minha formação. Possivelmente me influenciaram mais os motivos dos escritores, mesmo que eu nada soubesse deles, do que os seus livros. Cercando a questão mais de perto, eu poderia dizer de fora para dentro, concordando com pessoas que escreveram sobre o meu trabalho, que eu tive influência de Proust e Joyce, o que tem como obstáculo material apenas o fato de eu não ter lido Proust e Joyce antes de escrever o primeiro livro. Como para mim não tem importância consciente a questão da influência, é-me difícil sair dos meus verdadeiros problemas e analisá-la.
E hoje, como se sente influenciando tantos outros escritores?
Eu lamento, viu? Sinceramente. Tenho medo de que toda a minha literatura seja um equívoco. Acho que estou em moda. Eu não aprovo o meu tipo de literatura, não sou conivente comigo.
Mas se a imitam, é porque seu trabalho é bom você já virou um mito. Não acha?
Sabe, uma das coisas que mais me incomodam é o fato de as pessoas acharem que sou um mito. Isso prejudica muito a aproximação de pessoas que poderiam preencher o vazio de minha vida. Quer um exemplo? Daqui a pouco serão sete e meia. Um pintor de 25 anos vai me telefonar. Há vários meses esse rapaz me telefona nesse mesmo horário, só pra conversar comigo. Não o conheço pessoalmente e ele tem medo de vir me ver. Acha que sou uma esfinge, que precisa ser adorada à distância. Muitas pessoas acham, mas não sou nenhum bicho-papão. Mas pareço condenada a viver sozinha – dormir cedo, ira ao cinema sem ninguém ao meu lado. É o preço da fama.
Com quantos anos publicou seu primeiro trabalho?
Com 15 anos. Eu estava com uma influência tremenda do Hermann Hesse. Escrevi um conto que não acabava nunca e que me torturava horrivelmente. Eu o destruí. Então eu escrevi outro conto que foi publicado.
E como começou essa paixão pelos livros?
Quando eu aprendi a ler, devorava os livros, e pensava que eles eram como árvores, como bicho, coisa que nasce. Não sabia que havia um autor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que era assim e disse: ‘Isso eu também quero’.
Então você se sentiu vocacionada para a escrita ainda na infância?
Antes dos sete anos eu fabulava. Eu ensinei a uma amiga um modo de contar histórias. Eu contava uma história e, quando ficava impossível de continuar, ela começava. Ela então continuava e, quando chegava em um ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia: ‘Não estavam mortos’. E continuava. Com 7 anos eu aprendi a ler.
É verdade que nessa época você enviava textos para o jornal local e nunca eles não eram publicados?
O Diário de Pernambuco tinha uma seção às quintas-feiras dedicada às crianças. Ali eram publicadas s melhores histórias enviadas pelas leitoras mirins, com sorteio de vários prêmios. Nunca ganhei nada. Depois de muito pensar encontrei o porquê: todas as histórias vencedoras relatavam fatos verdadeiros. As minhas somente continham sensações e emoções vividas por personagens fictícios.
Como se sente quando não está escrevendo?
Eu acho que, quando não escrevo, eu estou morta.[...] É muito duro o período entre um trabalho e outro e, ao mesmo tempo, é necessário para haver uma espécie de esvaziamento da cabeça para poder nascer alguma outra coisa. E se nascer...É tudo tão incerto!
Como assim, “incerto”?
Cada vez escrevo um livro acho que ele vai ser o último. Que eu acabei ali.
Muitos escritores fazem obras sob encomendas. Você também faz?
Não faço contratos nem escrevo livros por encomenda ou prazo fixo. Nada disso. Escrevo uma crônica por semana e assim mesmo acho algumas muito fracas. Sou muito exigente comigo mesma...
Você se sente realizada como escritora?
Nunca me senti realizada como escritora, e tenho a impressão de que será assim até eu morrer.
Não gosta de escrever poemas?
Todo mundo parece que começa com poesia, não é? Eu andei escrevendo umas folhas, mas jogava fora, porque não prestavam.
Clarice, dizem que tudo na vida é aprendido, então diga: como é que se escreve?
Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve? Por que, realmente, como é que se escreve? Que é que se diz? E como dizer? E como é que se começa? E que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranqüilo?
Sei que a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever. Será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como escrever.
Então como você define o que faz, já que não se considera uma escritora ou literata?
Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora? O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana e animal.
Você costuma ler as críticas acerca de seus livros? Como reage?
Quando eu não estou trabalhando, eu leio a crítica, muito bem e tudo. Quando eu estou trabalhando, uma crítica sobre mim interfere na minha vida íntima, então eu paro de escrever para esquecer a crítica. Inclusive as elogiosas, pois eu cultivo muito a humildade. De modo que, às vezes, me sentia quase agredida com os elogios.
Acha que a crítica realmente afeta o leitor?
Sobre o leitor suponho que, certa ou errada, serve de informação-influência. Sobre mim, depende da crítica.
Como você define sua obra?
Uma tentativa fracassada de atingir o que existe.
Fracassada por quê?
Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem em tudo quero pegar. Ás vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos. E como a classifica então?
Não sei classificar a minha obra. Em cada livro eu renasço. E experimento o gosto do novo. Não, eu nunca soube que era responsável pela renovação da literatura brasileira, sobretudo no conto. E, se isso aconteceu, foi involuntariamente, sem programação.
Há escritores que se isolam de todo barulho para poder escrever. Qual é seu modo de trabalho?
Eu trabalho do modo mais esquisito do mundo. Eu trabalho sentada numa poltrona com a máquina no colo. Por causa dos meus filhos. Quando eles eram pequenos, eu não queria que eles tivessem uma mãe fechada num quarto a que não pudessem ter acesso. Então eu sentava no sofá, com a máquina no colo, e escrevia. Foi assim que meu filho pediu pra eu escrever uma história pra ele. Essa história eu escrevi em inglês[o mistério do coelho pensante]. Aos poucos ele ia levando pra cozinheira ler, voltava, sentava, esperava.
Qual a melhor hora do dia para escrever?
Eu acordo às quatro da manhã. Quando estou trabalhando é ótimo. Aproveito a madrugada para escrever. Mas quando eu não estou fazendo nada me chateio brutalmente. Não encontro nada para fazer. E todo mundo dorme.
Você sempre madrugou para escrever?
Quando escrevi ‘A maçã no escuro’, nos EUA, eu só conseguia ter vida social se escrevesse de manhã. Se não, me dava um mau humor tremendo. Aqui, agora, eu também escrevo sempre cedo.
Você consegue escrever mesmo quando está atravessando muitos problemas?
Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou espero soluções a problemas porque nessas situações faço tudo para que as horas passem – e escrever, pelo contrário, aprofunda e alarga o tempo. Se bem que ultimamente, por necessidade grande, aprendi um jeito de me ocupar escrevendo, exatamente para ver se as horas passam.
Há escritores que depois de um certo tempo vão reduzindo a produção de textos. Qual é o “fim da linha” para um escritor?
Penso que, apesar de não estar na moda ou ultrapassada, ainda não acabei. O fim é a perda de um estilo, o esquecimento do leitor, a pausa imposta, diferente do descanso de trabalho.
O que mais importante: escrever ou amar?
Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia. Ao passo que amar eu posso até na hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
O que acha das pessoas que escrevem apenas para conquistar a fama e prestígio?
Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho.
Existem coisas que você jamais colocaria no papel, isto é, prefere guardar só para você?
Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.
Como é o seu trabalho de tradutora?
Olha, eu faço tradução a qualquer hora. Sou muito desorganizada. Eu traduzo do inglês e do francês. Mas trabalho depressa, intuitivamente. Ás vezes consulto um dicionário, às vezes não e, dependendo do caso, várias vezes.
O trabalho das traduções é uma forma de prazer como a literatura ou de subsistência?
É o meu sustento. Respeito os autores que traduzo, é claro, mas procuro me ligar mais no sentido do que nas palavras. Estas são bem minhas, são as que elejo. Não gosto que me empurrem, me botem num canto, exigindo coisas. Por isso senti um grande alivio quando me despediram de um jornal, recentemente. Agora só escrevo quando quero.
Como assim, demitida?
No dia 2 de janeiro eu recebi um envelope, e dentro tinha as minhas crônicas e uma carta seca, sem nem agradecer os serviços prestados durante sete anos, dizendo que dai em diante eu estava dispensada de trabalhar. Então eu movi uma ação. O juiz foi simpático, disse que era muito meu admirador, mas deu sentença contra.
E por que foi demitida?
(Clarice fora demitida do Jornal do Brasil) Alegaram que eu era apenas uma colaboradora. Acontece que eu ganhava mensalmente, recebia 13a salário e preparava crônicas especiais por ocasião do Natal, Dia das Mães etc., o que me fazia claramente uma assalariada. Não sei por que fui despedida, mas sei que, um dia antes de mim, outro jornalista, com condições de trabalho exatamente iguais às minhas, ganhou a indenização que lhe era devida e que a mim foi negada. Perdi para a empresa em todas as instâncias.
Você traduzia do inglês e do francês. Como aprendeu francês?
Sabe como é que aprendi francês? Lendo francês. Peguei um livro em francês e me pus a ler, e pelo sentido, pela semelhança da língua latina, eu ia pegando, pegando, até que aprendi. A conversação...bem, eu estive três anos na Suíça, e a minha empregada falava francês comigo. O inglês também foi assim, eu nunca fiz curso.
O que acha da língua portuguesa?
Amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira camada de superficalismo. [...] Eu gosto de manejá-la – como gosto de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Você já se sentiu explorada ou espoliada pelas editoras?
Mesmo editada em Portugal, e traduzida na França, Estados Unidos e outros países, e mesmo com meus trabalhos publicados em inúmeras antologias escolares de autores brasileiros, eu nunca vivi exclusivamente para a literatura. O motivo, porém, não chegou a ser o desinteresse do público pela minha obra, mas, sim, a utilização indevida de que se beneficiam os editores.
Que tipo de “utilização indevida”?
Os contratos prendem o escritor, que, em geral, desconhece os seus direitos. Eu mesmo assinava cegamente os meus contratos, fui procurada por Carmem Balcells, agente literária européia, que, juntamente com Maria Helena Geordani, cuidará dos meus interesses, já que eu mesma não soube cuidar. No caso de traduções dos livros em outros países, recebo apenas um adiantamento e nunca mais ouço falar como andam as vendas. Há também os casos de edições fantasmas, ou seja, suponhamos que o contrato fale em 5000 exemplares, mas, na verdade, a editora imprime o dobro e não paga os direitos autorais. E nós não temos meios de controlar.
Por que não escreve uma biografia sua ou um livro de memórias?
O que escrevo de mim é o que sai naturalmente. Escrever memórias não faz meu estilo. É levar ao público passagens da minha vida. A minha é muito pessoal.
Você é reservada, não costuma conceder entrevistas.
Eu não gosto de entrevista...Parece que me mitificaram. Eu sou uma mulher simples. Não tenho nada de sofisticação. As entrevistas que eu dou são para explicar que não sou um mito. Sou uma pessoa como outra qualquer.
Apesar de não se sentir bem como entrevistada, você colaborou como jornalista entrevistando muitas personalidades.
Eu me expus nessas entrevistas [publicadas em De corpo inteiro] e consegui assim captar a confiança de meus entrevistados a ponto de eles próprios se exporem. As entrevistas são interessantes porque revelam o inesperado das personalidades entrevistadas. Há muita conversa, e não as clássicas perguntas e respostas.
Você se considera uma intelectual?
Sou ignorante demais para ser uma intelectual. Não sou uma literata. Não vivo no meio dos livros, nem tampouco de flores e de aves, como me acusam às vezes...Sou uma intuitiva, quer dizer, eu sinto mais do que penso.
Mas você é amiga de escritores, de pessoas intelectualizadas.
Eu nunca pretendi assumir atitude de superintelectual. Eu nunca pretendi assumir atitude nenhuma. Levo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cuido da casa. Gosto de ver amigos. O resto é mito.
Você é modesta consigo?
Não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo que não tenho cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade. Além do que leio pouco: só li muito, e lia avidamente o que me caísse nas mãos, entre os treze e os quinze anos de idade. Depois passei a ler esporadicamente, sem ter a orientação de ninguém. Isto sem confessar que – dessa vez digo-o com alguma vergonha – durante anos eu só lia romance policial. Hoje em dia, apesar de ter muitas vezes preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do de escrever.
Clarice, você costuma reler seus próprios romances?
Eu não releio. Eu enjôo. Quando é publicado já é como um livro morto, não quero mais saber dele. E, quando leio, eu estranho, acho ruim, por isso não leio. Também não leio as traduções que fazem dos meus livros para não me irritar. Eu nem quero saber. Mas sei que não sou eu mesma escrevendo.
Você acha que escreve bem?
Eu nunca acho que eu escrevi bem. Nas vezes em que eu me forcei a ler algo meu, tive uma grande sensação de imperfeição. Tudo ali era muito sofrido, muito conhecido.
Mesmo vivendo à custa de diferentes modalidades de escrita, você acha difícil escrever?
Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.
Você diria que apesar da dificuldade, sempre vale a pena escrever?
O problema não é se vale a pena escrever: tem-se que. Um exercício de aprender, uma maneira de ser: escrever não é literatura, e nem exige uma compensação.
O que é literatura então?
Apesar de ocupada com escrever desde que me conheço, infelizmente faltou-me também encarar a literatura de fora para dentro, isto é, como uma abstração. Literatura para mim é o modo como os outros chamam o que nós [escritores] fazemos.
E o que é escrever?
Escrever é procurar entender, é reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a ‘coisa’ vem. Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se passar anos. Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros.
Por que você disse uma vez que escrever é uma maldição?
É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva.
Sente vontade de fazer parte Academia Brasileira de Letras?
A entrada ou não é um problema absolutamente pessoal de cada escritor. Há quem seja gregário – eu não sou, e acho que lá eu me sentiria, assim, meio vigiada, meio tolhida. Deve ser bobagem minha, mas no fundo eu tenho é medo de parar.
Como você se sentiu ao ganhar da Fundação Cultural do Distrito Federal um prêmio pelo conjunto de sua obra?
Fiquei contentíssima. Não esperava. Uma completa surpresa. Mas logo veio uma depressão muito forte. Eu, ganhar esse dinheirão, e tantas crianças que necessitam por aí...[...] por que não se faz uma doação a essas crianças? [...] Porque os adultos ficariam com o dinheiro. Olhe aqui eu já tentei reformar o mundo. Por isso fui estudar direito. Me interessava pelo problema das penitenciárias. Mas desde que recebi a notícia do prêmio não consigo pensar senão nisto: crianças morrem de fome, crianças mortas de fome. Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coisas?
E o dinheiro chegou no momento certo?
Eu bem que estava precisando desse dinheiro. Sinto-me um tanto humilde, por não merecer tanto. Disseram-me que quando nos conferem um prêmio, é porque já nos consideram aposentados. Mas eu não me aposentarei. Espero morrer escrevendo. O que não disse por falta de frieza ficará sempre no limbo.
Você é contra a literatura engajada ( literatura de temática abertamente social)?
Eu admito a literatura participante. Se não faço isso é porque não é do meu temperamento. A gente só pode tentar fazer bem as coisas que sente realmente. Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante não são os fatos em si, mas a repercussão dos fatos no indivíduo. Isso é que tem muita importância mesmo para mim. É o que faço. Acho que sob esse ponto de vista, eu também faço livros comprometidos com o homem e a realidade do homem, porque a realidade não é um fenômeno puramente externo.
É possível estipular uma função ou objetivo para a literatura? Qual?
A literatura deve ter objetivos profundos e universalistas: deve fazer refletir e questionar sobre um sentido para a vida e, principalmente, deve interrogar sobre o destino do homem na vida.
A hora da estrela é um livro que traz um detalhe diferente: é ambientado em Alagoas, terra onde você viveu uma pequena parte da infância. De onde veio a inspiração para criar a personagem macabea?
Trato de uma moça nordestina. Eu vi essa moça na feira dos nordestinos, em São Cristóvão. Olhei para ela e descobri tudo. Tudo sobre ela, entende? Bastou um olhar. Eu sou muito intuitiva.
Água viva é uma obra não se enquadra em nenhum gênero literário conhecido. E também por isso você classificou apenas como ficção. Qual sua intenção ao escrever algo tão diferente?
É ficção, sim. Pois não me aconteceu nada em relação à personagem, além o fato de eu jamais ter sido pintora. Minha ambição era essa coisa quase impossível: captar o instante que passa. Para isso, quase nunca me referi ao passado ou ao futuro. Tinha que ser um livro, por assim dizer, do momento sempre atual.
Quanto levou para escrever Água viva e como foi a gestação dessa obra?
Eu trabalhei três anos em Água viva. Antes ele tinha 280 páginas. E nesses três anos eu fui podando, podando, para que nenhuma palavra fosse vazia, para que toda palavra tivesse alguma coisa a dizer. Por isso ele é denso. Foi muito difícil de escrever. Fui reescrevendo, reescrevendo. Então, um dia, o Alberto Dines me perguntou pelo livro. Eu disse: ‘Ainda não está pronto’. Ele respondeu: ‘ Quem sabe se já não está?’. Pediu para ler, leu e depois me confirmou: ‘O livro é esse, está pronto. Então vi que estava mesmo e resolvi publicar.
Foi o livro mais difícil de escrever?
Não acho que este livro seja mais difícil do que ‘A cidade sitiada’. Considero ‘A cidade sitiada’ como um dos meus melhores trabalhos. Se todo mundo hoje pode ler e alcançar a mensagem de ‘Água viva’, isso é problema que me escapa. Mas uma coisa é verdade. Isso: em cada livro meu, eu conto tremendamente com a participação do leitor.
Fale um pouco sobre A cidade sitiada.
A cidade sitiada foi, inclusive, um dos meus livros mais difíceis de escrever, porque exigiu uma exegese que eu não sou capaz de fazer. É um livro denso, fechado. Eu estava perseguindo uma coisa e não tinha quem dissesse o que era. San Tiago Dantas abriu o livro, leu e pensou: ‘Coitada da Clarice, caiu muito’. Dois meses depois, ele me contou que, ao ir dormir, quis ler alguma coisa e o pegou. Então ele me disse: ‘É o seu melhor livro’. [...] É a formação de uma cidade, a formação de um ser humano dentro de uma cidade. Um subúrbio crescendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital... Construíram uma ponte, construíram tudo, e de modo que já não era subúrbio. Então o personagem dá o fora.
‘A maçã no escuro’ foi reescrito várias vezes, também lhe rendeu um grande esforço, não?
Eu me lembro muito do prazer que eu senti ao escrever ‘A maçã no escuro’. Todas as manhãs eu datilografava, chegava às 500 páginas. Eu copiei 11 vezes para saber o que é que estava querendo dizer, porque eu quero dizer uma coisa e não sei bem ao certo. Copiando eu vou me entendendo.
Há quem prefira A paixão segundo G.H. acima de seus outros romances.
É curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi ‘A paixão’, que não tem nada a ver com isso, não reflete[...], em absoluto. Porque eu não escrevo como catarse, para desabafar. Eu nunca desabafei num livro. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si.
A paixão segundo G.H. também é denso e quase sem enredo, o que o leitor deve fazer para entendê-lo?
A paixão e uma coisa para ser subliminarmente entendida. Um professor de literatura do Pedro II veio à minha casa e disse: ‘Li quatro vezes A paixão e não sei do que se trata, eu não entendo o que você quis dizer’. No dia seguinte, uma universitária de 16 anos me visitou e disse: ‘Meu livro de cabeceira é A Paixão. A menina pegou tudo, o professor de literatura não pegou nada.
Qual o trabalho que considera mais bem estruturado?
A maçã no escuro foi o único livro bem estruturado que eu escrevi, eu acho. Se bem que não: Água viva segue o seu curso.
Nota-se em seus textos, sobretudo, nos contos, a presença de um humor sutil e penetrante. Você também confere isso?
Alegria também faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se descontrai.
Seu livro “A via crucis do corpo” é um conjunto de contos que aborda a temática do sexo, assunto raro em seus textos. Como surgiu a idéia de escrevê-lo?
Você sabe o que é um furúnculo? Eu nunca tive. Mas é uma coisa alta e dura, parece. Pois é. O editor Álvaro Pacheco me pediu, e eu disse: ‘Não aceito encomenda’. ‘Mas só você poderia escrever essas histórias’, ele disse. Aí eu escrevi as histórias de “ A via crucis do corpo”, mas senti como se uma agulha tivesse furado o furúnculo.
Você adentrou de forma competente na literatura infantil. Escreveu, por exemplo, “A vida íntima de Laura”. Por que quis falar sobre uma galinha?
Eu fiz porque galinha sempre me impressionou muito. Quando eu era pequena, eu olhava muito para uma galinha, por muito tempo, e sabia imitar o bicar do milho, imitar quando ela estava com doença, e isso sempre me impressionou tremendamente. Aliás, eu sou muito ligada a bicho, tremendamente. A vida de uma galinha é oca...uma galinha é oca!
Você cria um cão que, aliás, ficcionalizou em suas obras e os bichos, em geral, costumam servir de motivos para seus textos. Como explica esse fascínio pelos animais?
Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre nós. Conheci uma mulher que humanizava os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas próprias características. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa – há que respeitar-lhes a natura – eu é que me animalizo. Não é difícil, vem simplesmente, é só não lutar contra, é só entregar-se.
Seus romances parecem não possuir enredo. Por que optou por uma literatura densa, intimista em vez da tradicional técnica do relato de ação?
Para me divertir eu poderia inventar muitos fatos e criar histórias, inventar é fácil e não me falta a capacidade. Mas não quero usar esse dom que eu desprezo, pois ‘sentir’ é mais inalcançável e ao mesmo tempo mais arriscado. Sentindo-se pode-se cair num abismo mortal. O que procuro? O deslumbramento. O deslumbramento que só conseguirei através da abstração total de mim.
Por que você nunca participou de nenhum grupo de vanguarda, desses que reúnem certos número de escritores?
Eu não sei te explicar, mas eu sinto que estou isolada. Eu não pertenço a nenhum grupo, nenhum grupo me convidou até hoje para fazer parte dele. Realmente não me querem. Mas eu não faço questão. Que assim seja. Eu não me alimento de literatura. Meus amigos, eu os escolho em qualquer profissão, ou nenhuma profissão, e isso me garante satisfeita a necessidade gregária que a gente tem.
Você não tem medo de que seus livros se tornem sacralizados demais, a ponto de serem procurados não apenas como uma forma de prazer, mas sobretudo como uma obrigação de leitura nas escolas e vestibulares?
Sofro se isso acontecer, que alguém leia meus livros apenas no método do vira-depressa-a-página dinâmico. Escrevi-os com amor, atenção, dor e pesquisa, e queria de volta como mínimo uma atenção completa. [...] E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência para ler ficção.
Como se sente escrevendo crônicas para jornais?
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito.
O que acha da influência que os escritores brasileiros estão recebendo de autores estrangeiros?
Estou enojada com a mais do que influência que certos escritores brasileiros recebem de norte-americanos e latino-americanos. Influência de Gabriel García Márquez, Borges... Quando eu publiquei o meu primeiro livro, saída da adolescência, eu não tinha cultura alguma. No entanto diziam que eu tinha influência de Joyce e Virgínia Woolf. Acontece que eu li Joyce depois de escrever meu primeiro livro, cujo título me foi dado por Lúcio Cardoso. Quando na França, um jornalista me disse que eu escrevia como santa Teresa d’Ávila fiquei pasmada, eu nunca li os seus escritos... Quanto a Virgínia Woolf, simplesmente ignorava haver no mundo uma pessoa assim chamada. Acho possível, no entanto, que mesmo sem lê-los eu tenha apanhado alguma coisa no ar... É possível. Por exemplo, eu adoro D. H. Lawrence e no entanto, meus livros nada têm com os dele. Em Paris, um jornal disse que eu tinha influência de Sartre. Acontece que só vim a saber da existência de Sartre no meu segundo livro. Quem me emprestou Sartre, então desconhecido para mim, foi o professor Francisco Paulo Mendes, de Belém do Pará, onde passei seis meses.
O que você gostaria de fazer se não escrevesse?
O contato com o outro ser através da palavra escrita é uma glória. Se me fosse tirada a palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar ou pintar. Alguma forma de comunicação com o mundo eu daria um jeito de ter. Escrever é um divinizador do ser humano.
Todo ser humano possui algum tipo de medo. Qual o seu?
Há algo de que eu tenho medo. Acho que eu tenho medo do futuro. Sempre tive, realmente.
A Ucrânia, onde você nasceu, te marcou de alguma forma?
A minha terra não me marcou em nada, a não ser pela herança sangüínea. Eu nunca pisei na Rússia.
Você possui muitos fãs e admiradores. O que acha de receber tantos elogios?
Muito elogio é como é como botar água demais na flor. Ela apodrece. Morre.
Você passou quase 16 anos longe do Brasil acompanhando seu marido diplomata. O que achava da vida diplomática?
Eu detestava, mas eu cumpria com minhas obrigações para auxiliar meu ex-marido. Eu dava jantares, fazia todas as coisas que se deve fazer, mas com um enjôo...
Você passou pela experiência de um aborto, se importa em falar sobre isso?
Em Londres, eu tive um aborto involuntário, quase morri. Fui levada desacordada para um hospital e quando abri os olhos estava sentado junto de mim, com cara de santo, o João Cabral de Melo Neto. Não esqueço. Aliás, nunca esqueço nenhum amigo.
Você é se considera vaidosa?
Vou lhe confessar minha vaidade. Não é literária, não... Não ligo, aliás não gosto de falar em literatura e nem de badalação como escritora. Mas gosto que me achem bonita. Isto, sim...Me faz um bem enorme. Eu tive muitos admiradores. Há homens que nem em dez anos me esqueceram. Há o poeta americano que ameaçou suicidar-se porque eu não correspondia...Eu penso muito nessas coisas.
Soube de um fã que lhe escreveu dizendo achar você linda. Você concorda com ele?
Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de esperança, então de minha pessoa se irradia algo que talvez se possa chamar de beleza.
Ele também observou que às vezes nota-lhe um certo desalento.
Sou um pouco desalentada, preciso demais dos outros para me animar. Meu desalento é igual ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém, receber um telefonema ou lidar com alguém que eu gosto e minha esperança renasce, e fico forte de novo.
Sua família é pequena, além de seus pais, você teve apenas duas irmãs. Como foi sua infância?
Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia desses à Elisa, que é a [a irmã] mais velha, se nós passamos fome, e ela disse que quase. Havia em Recife, numa praça, um homem que vendia uma laranjada na qual a laranja tinha passado longe. Isso e um pedaço de pão era o nosso almoço. [...] eu não tinha consciência. Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim [doente]... Eu era tão viva!
Você brincava na rua?
Nunca gostei de ficar em casa. Sempre que podia estava na calçada querendo encontrar alguém para brincar. Apesar de não ser extrovertida, sinto grande necessidade de afeto e carinho. Por isso, quando via um menino ou menina passar na porta de casa, perguntava: ‘Você quer brincar comigo?’. Os não eram muitos, os sim, poucos.
Você acredita na vida após a morte?
O único modo de se saber que existe vida depois da morte, é o de acreditar nisso ainda em vida. Eu queria morrer uma vez e voltar a viver – só para conhecer o sumo da vida que é a morte.
Clarice Lispector tem medo de morrer?
Às vezes me dá um medo danado de morrer. Sei lá. Não consigo pensar em deixar de existir. Tenho medo também de perder a inspiração de repente. Já fiquei dez anos sem escrever. Por isso, pinto.
O que acha dos escritores que se suicidam? Você admitiria apressar sua morte por algum motivo?
Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf: é que não quero perdoar o fato de ela ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo.
Você tem religião?
[...] sou mística. Não tenho religião, porque não gosto de liturgia, de ritual.
Por causa da sua escrita mística você foi convidada uma vez para estar presente em congresso de bruxaria na Colômbia. Cite então uma coisa que você considera mágica.
Acho inteiramente mágico o fato de uma escura e seca semente conter em si uma planta verde brilhante.
Sabe-se que todo mundo possui defeitos. Quais os seus?
Foi o Hélio Pellegrino quem disse que a preguiça e a impaciência são os maiores defeitos do homem. Eu sou preguiçosa e impaciente. Sou irrequietíssima. Mas fui muito paciente com meus filhos. Sou paciente para escrever e com bichos.
Todos conhecem a Clarisse escritora, mas como é a Clarice mãe?
Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo.
Você é uma pessoa solitária?
Sabe, é uma besteira dizerem que eu sou uma mulher solitária, têm a mania de escrever isso a meu respeito. É cretino, mesmo. Eu detesto ficar só, não gosto nem de ir ao cinema sozinha. [...] Gosto de repartir minhas emoções com outras pessoas, dividir tudo o que é bom...
E fora do Brasil, não sentia solitária? Você disse uma vez que em Berna, na Suíça, você se sentia presa.
Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada? Eu ia ao cinema todas as tardes, pouco importava o filme. E lembro-me de que às vezes, à saída do cinema, via que já começara a nevar. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve – nessa hora eu me sentia pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir.
E como conseguiu vencer essa monotonia?
O que me salvou da monotonia de Berna foi viver na Idade Média, foi esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo sr refletissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um de meus livros menos gostado, “A cidade sitiada”, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino.
Por que você escolheu se formar em Direito?
Quando eu era pequena, era muito reivindicadora dos direitos da pessoa, então diziam que eu seria advogada. Isso me ficou na cabeça e, como eu não tinha orientação de nenhuma espécie sobre o que estudar, fui estudar advocacia. [...] No terceiro ano eu reparei que nunca lidaria com papéis e que a minha idéia – veja o absurdo da adolescência – era estudar advocacia para reformar as penitenciárias. [...] Então eu vi que aquilo já não me interessava e arranjei um emprego em um jornal [A noite].
Mesmo sabendo que não exerceria a profissão, você concluiu o curso que havia interrompido por causa das viagens do marido...
O meu diploma foi conseguido somente por pirraça. Uma amiga, cujo nome não vou dizer, disse quando estávamos no terceiro ano: ‘Você é dessas que começam um monte de coisas e não terminam nenhuma’. Isso me aborreceu e, para provar que ela estava errada, comecei a estudar das sete da manhã até as 11 da noite, parando apenas meia hora para almoçar e uma hora para jantar.
Você se considera uma pessoa simples ou complexa?
Sou uma mulher simples e complexa ao mesmo tempo. Como toda mulher, afinal de contas. Minha vida é dirigir a casa, participar da vida dos meus filhos, o quanto eles me permitem, é claro, porque às vezes eles até proíbem participar da vida de meus amigos.
Você falou que é simples e complexa. Porém é mais simples ou mais complexa?
Simples. Embora meus vários tipos de simplicidade às vezes se entrechoquem. Simples, porém não simplificada, nem simplifico os outros.
Você mora em uma das cidades mais lindas do Brasil, que é o Rio e, em suas obras, também é muito comum a referência ao mar. Costuma ir à praia tomar banho de mar?
O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indolência. E também por impaciência como ritual necessário: barraca, areia colada por toda a pele. E mesmo não sei ir ao mar sem molhar os cabelos. [...]Tenho uma conhecida que mora na Zona Norte, o que não justifica nunca ter entrado no mar. Fiquei pasma quando me contou. E prometi que ela viria em casa para entrarmos no mar às seis horas da manhã. Por quê? Porque é a hora da grande solidão do mar. Como explicar que o mar é nosso berço materno mas que seu cheiro seja todo masculino; no entanto berço materno? Talvez se trate da fusão perfeita do masculino com o feminino. Às seis horas da manhã as espumas são mais brancas.
Você sofreu um acidente doméstico com fogo e teve queimaduras graves. Os médicos queriam até amputar uma de suas mãos. Qual a sua reação quando tiraram os pontos de sua mão operada?
Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.
Você pode prever como será o Brasil daqui a vinte e cinco anos? (Clarice estava 1967, época da ditadura militar)
Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.
Em sua opinião, qual o mais urgente problema brasileiro a ser combatido?
O da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.
Você considera elevado o preço do livro no Brasil? O que deveria ser feito para resolver o problema?
O comércio editorial na certa ganharia se livro não fosse ‘presente de Natal’ e estivesse – por preço e distribuição – ao alcance fácil de todos. Eu não saberia dizer o que precisa ser feito, mas há muitos escritores que sabem e deveriam ser ouvidos, em conjunto com os editores.
Você acredita que no futuro suas obras continuarão sendo apreciadas da mesma forma?
Acontece que estou sendo muito imitada, sobretudo nos meus cacoetes. Acho que meus livros vão perder o valor, porque quem imita já tem uma base, algo que lhe é anterior e que pode refinar...
Para finalizar, qual a grande recompensa por escrever tantos livros?
A grande recompensa? É o fruto do trabalho. É saber que há gente que procura compreender o que faço. É receber cartas maravilhosas de crianças, velhos, como uma que eu recebi, outro dia, de um homem simples, que me chama de ‘mãe do Brasil’.
Izabel Coutinho.
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