domingo, 1 de janeiro de 2012

Giovanni Boccacio e seu DECAMERÃO

A sensacional obra de Giovanni Boccacio (1313-1375), Decamerão, é uma obra-prima da literatura italiana composta de cem novelas, todas ambientadas no cenário da Idade Média marcada pela peste negra. São histórias engraçadas, mirabolantes, divertidas e, muitas vezes eróticas. Mas o objetivo de Boccacio não era nada vulgar, a obra era também uma forma de denunciar a corrupção do clero católico da época, chegando a figurar nas páginas do Índex Librorum Prohibitorum, ou seja, a relação de livros condenados pela Inquisição à fogueira. Para nossa sorte, exemplares da obra escaparam ilesos ao destino ígneo. A importância de Boccacio na literatura mundial é indiscutível, ele influenciou autores como Voltaire, Molière, Shakespeare, Jonathan Swift e Cervantes. Seu Decamerão  teve algumas histórias filmadas pelo legendário Pier Paolo Pasolini e ganhou adaptação na rede Globo.
A décima novela conta a história de uma jovem de catorze anos, chamada Alibeque, que era muito ingênua e ouvira falar que a melhor maneira de servir a Deus era mandar o diabo para o inferno. Curiosa e disposta a aprender como se fazia isso, fugiu de casa e foi para o deserto para procurar um eremita que lhe ensinasse tal coisa. Depois de passar por vários eremitas, que não puderam lhe explicar esse mistério, finalmente ela chega na tenda de um homem tido por muito santo, um eremita chamado Rústico. O religioso tenta resistir a tentação que a jovem representa mas não consegue, então acaba ensinando-a como se "manda o diabo para o inferno". Veja um fragmento dessa história.

Rústico despiu-se das poucas vestes que trazia; ficou completamente nu; a jovenzinha fez o mesmo; o eremita ficou de joelhos, como se estivesse pronto para rezar; à frente, ordenou que também ela se colocasse de joelhos. Ficando os dois nessa posição, Rústico sentiu que atingira o clímax de seu desejo, vendo-a tão linda; desse modo, veio-lhe a ressurreição da carne. Alibeque contemplou aquela ressurreição; e, maravilhada com o fato, disse:
__ Rústico, que é essa coisa que vejo em você, que tanto se ergue para fora, e que eu não possuo?
__ Oh! Minha filha! Isto é o diabo, do qual lhe falei; e veja você, agora; ele está-me trazendo grande aborrecimento; a tal ponto que não consigo tolerá-lo.
A moça, então exclamou:
__ Oh! Deus seja louvado, pois vejo que estou em condições melhores do que você, visto que não tenho diabo.
Rústico comentou:
__ Você diz uma verdade; porém, você tem outra coisa, que eu não possuo; e você a tem em troca disto.
Perguntou Alibeque:
__ E o que é?
A isto explicou Rústico:
__ O que tem você é o inferno; e digo-lhe que creio tê-la enviado Deus para mim, aqui, para a salvação de minha alma. Tão grande aborrecimento me causa esse diabo, mas, se você tiver compaixão de mim, e consentir que eu torne a mandar este diabo ao inferno, você me dará grande consolo, e prestará grande prazer a serviço de Deus; e isto sucederá, se é certo que você veio para este deserto para fazer aquilo que disse que veio fazer.
De boa fé retrucou a jovem:
__ Oh, Padre meu! Já que tenho o inferno, seja feito assim, quando for de sua vontade.
Disse então Rústico:
__ Minha filha, seja você abençoada! Vamos, portanto, colocar o diabo no inferno para que, depois, ele me deixe em sossego.
Assim falando, Rústico levou a jovem para um de seus pequenos leitos, onde lhe ensinou a maneira como devia estar para encerra o maldito de Deus. A jovenzinha, que jamais pusera nenhum diabo naquele inferno, sofreu, da primeira vez, alguns aborrecimentos; e assim, disse a Rústico:
__ Por certo meu padre, esse diabo será coisa muito ruim, deve mesmo ser inimigo de Deus; pois, mesmo colocando no inferno, além de causar mal aos outros, dói quando é reenviado lá para dentro.
Rústico acalmou-a:
__ Minha filha, isto não será sempre assim.
E, para evitar que a coisa se repetisse, tornou a pôr o diabo no inferno por mais seis vezes, antes de se afastarem do pequeno leito; da última vez, toda a soberba se lhe estufou da cabeça; tanto que o diabo, então, ficou de bom grado em paz. Retornando-lhe, contudo a soberba várias vezes depois disto, e continuando a jovem obediente à missão de lha dissipar outra vez, aconteceu que aquilo começou a agradar e, então disse ela a Rústico:
__ Estou vendo muito bem que aqueles valorosos homens de Capsa diziam a verdade, ao esclarecerem que era coisa suave o servir a Deus; certamente, não me lembro de ter nunca feito outra coisa que tanto prazer e tanto deleite me desse, como a tarefa de tornar a pôr o diabo no inferno. Por esta razão, digo-lhe que é tola toda pessoa que se entregue a outros serviços que não sejam os de servir a Deus.

A  história continua e o religioso já não dá conta de satisfazer a vontade da jovem de “servir” a Deus. Ele alimentava-se de raízes de ervas e não tinha mais energia para tanto ardor da moça. Entretanto, um fato aconteceu: a família dela morre num incêndio e um jovem de nome Neerbal encontra Alibeque para dizer-lhe que ela é herdeira de um fortuna mas terá que casar-se com ele. Alibeque fica inconformada de ter de deixar a nobre missão de mandar o diabo ao inferno com o eremita. De volta à sua terra, as mulheres rodeiam a jovem e querem saber o modo como se servia a Deus no deserto.

(...) e ela respondeu que servia mandando de volta o diabo ao inferno, e que, por isso, Neerbal cometera um enorme pecado ao tirá-la desse serviço. Indagaram as mulheres:
__ E de que modo é que se remete de volta o diabo ao inferno?
Um pouco com palavras, outro tanto com gestos, a jovem indicou-lhes como. As mulheres, então, prorromperam em gargalhadas; até parece que ainda estão rindo. E disseram:
__ Não fique triste por isso, menina; não se entristeça; essa coisa se faz muito bem também nessas bandas; Neerbal, juntamente com você, servirá perfeitamente a Deus nosso Senhor.

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