O título deste blog é “Estação da palavra”. Minha intenção era que se chamasse “Estação das palavras”, mas já havia um blog com esse nome. Tudo bem, eu queria, na verdade, qualquer coisa que contivesse o vocábulo “palavra”, pois é disso que o blog trata __ literatura, poesia, gramática, linguagem. Pensando nisso, fiquei contemplativa: as palavras têm poder, não conseguimos viver sem elas, pois fazem parte da gente e estamos sempre nos articulando entre dois movimentos: nos exprimir e compreender o discurso do outro. Mas qual seria o tal poder das palavras?
Em minhas pesquisas, encontrei o pai da psicanálise refletindo sobre esse tema. Em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, Freud reconhece o poder das palavras: por meio de palavras, uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero; por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos; por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia seus julgamentos e decisões. Palavras despertam afetos e são o meio universal de os homens influenciarem uns aos outros. Freud usava a linguagem como ferramenta libertadora de repressões. Por meio da fala, o paciente deixava fluir reminiscências psíquicas de modo que seus traumas vinham à tona e podiam ser encarados.
Até a Bíblia reconhece o poder das palavras. O livro de provérbios esclarece: “uma resposta branda aplaca o furor, uma palavra dura excita a cólera” (Prov-15-1). O profeta Natã pôs esse provérbio estrategicamente à risca para conscientizar o rei Davi sobre seu pecado com a mulher de Urias. Para conseguir convencer o rei do seu mau proceder, Natã narrou uma comovente historinha que envolveu emocionalmente o rei. Indignado com o personagem mau, Davi o decretou como digno de morte: “Pela vida do senhor! O homem que fez isso merece a morte. Ele pagará quatro vezes a ovelha por ter feito uma coisa destas, sem ter pena.” Natã triunfante desfechou a catarse dramática: “Este homem és tu...!”. O rei Davi havia sido vítima de uma alegoria de aparência singela, porém persuasivamente contada. Natã conseguiu assim acusar o rei, sem perder o próprio pescoço.
O poder encantatório das palavras é também o que salva Scheerazade,
em As Mil e uma Noites. Toda noite ela contava histórias que acendiam a imaginação do seu ouvinte, que poupava-lhe a vida para que aquelas histórias continuassem desfilando em sua imaginação.
Nem sempre é verdadeiro o provérbio que diz que meia palavra basta. Às vezes uma palavra é usada para esconder outras, maquiando, omitindo ou dissimulando uma realidade. É o que acontece quando um político é pego em flagrante em situação de improbidade: ele se defende negando ou minimizando o fato de uma forma que acaba “saindo pela tangente”.
Usar as palavras para confundir não é tão difícil, visto a própria natureza da linguagem humana. Segundo o linguista Ferdinand Saussure, os signos (palavras) são arbitrários, ou seja, não passam de uma invenção humana usada para viabilizar a comunicação. Sendo assim, a palavra possui grande teor de ambiguidade natural. Por isso, a frase “está frio aqui”, pode está informando a temperatura ou pode ser um pedido para alguém fechar a janela.
Escritores como Machado de Assis, usavam a ambiguidade da linguagem para criar histórias que deixavam os leitores na missão de descobrir o que estava por trás das atitudes dos personagens. Ao descrever o olhar de uma personagem, Machado não pintava apenas sua aparência, entremostrava detalhes cruciais para o entendimento do comportamento dela.
Em advocacia, sabe-se o poder que uma palavra pode ter para o desfecho de um processo. Da mesma forma que uma roupa confere a uma pessoa uma imagem positiva ou negativa, a forma como uma pessoa apresenta-se ou é apresentada por seu advogado é capaz de construir um perfil de aparente inocência ou de aparente perfídia.
Não é à toa que em uma entrevista de emprego as pessoas costumam ficar nervosas. Serão julgadas com base naquilo que falarem e na forma como usarem suas palavras. Basta abrir a boca e já será possível medir-lhes o grau de instrução, deduzir-lhe a origem geográfica e conhecer uma pouco de sua personalidade e estado emocional em que se encontram.
Aliás, ninguém quer trabalhar ao lado de pessoas que vivem reclamando da vida e propagando frases de medo e insegurança. A cada dia aumenta o filão dos livros e conferências de autoajuda destinados aos que procuram soluções para aumentar suas vendas, conseguir promoções no serviço ou simplesmente atrair bons fluidos em sua vida. E é através da força das palavras que esses autores tentam mostrar a seus interlocutores como mudar o foco dos pensamentos, superar os obstáculos, dá vazão ao seu processo criativo, enfim, direcionar a energia para as coisas desejáveis.
O apropriado manuseio das palavras não está restrito a um determinado segmento social. Qualquer aluno de cursinho sabe que por mais que consiga destrinchar os mais árduos problemas de matemática não conseguirá ser aprovado a menos que desenvolva uma boa prova de redação. Na modalidade escrita, sua linguagem verbal será mais exigida, qualquer infração à gramática, que na oralidade é automaticamente relevada, na folha de papel torna-se um pequeno entrave rumo à escrita de um texto coeso e coerente.
Mas as palavras guardam grandes mistérios, nenhuma gramática consegue aprisioná-las. Por isso, um repentista encanta seu público; pela espontaneidade de sua fala e pelo aspecto cômico das histórias que inventa. Da mesma forma, uma gíria ou um simples bordão criado na internet ou nas novelas conseguem se disseminar como praga no milharal e chamam atenção a cada vez que são pronunciados.
É na seara da poesia, entretanto, que o fascínio das palavras emerge poderosamente. No poema “O lutador”, Carlos Drummond de Andrade revela que luta com palavras e tenta enlaçá-las, capturando sua magia, viço e esplendor. Nessa luta, nem sempre consegue a vitória almejada, mas não é capaz de fugir desse embate, está viciado nesse duelo diário que consiste em tentar apanhá-las, no seu dizer, “acariciá-las”, provar sua essência, sentir-lhes a textura sonora, o travo peculiar que as envolve.
Podemos dizer a Drummond que o leitor também se sente dominado pela dimensão poética das palavras pois é chamado a sonhar, a cavalgar por universos oníricos que somente a fantasia é capaz de edificar. Nessa hora, a palavra se despe de sua função informativa e lógica e conduz ao devaneio saudável, aquele que permite viajar nos limites dos sentidos, abandonando-se às sensações, sem contudo, soltar as amarras da lucidez.
A palavra tem poder criador e o próprio pensamento é tecido por elas. Segundo a Bíblia, Deus criou o mundo pela palavra. Ela teria sido o abre-te Sésamo divino para trazer as coisas à existência. Pela palavra, os mitos são repassados, o cientista promove suas teses e a História da humanidade é trançada para a posteridade. A criança somente cruza o mundo natural e adentra verdadeiramente no mundo humano, formado por símbolos e/ou signos, quando aprende a falar e, no caso da cultura contemporânea, com o devido processo de letramento.
As palavras manejadas de forma inteligível e elegante fornecem status aos seus emissores e podem permitir um trânsito social mais desembaraçado. É isso que é possível notar em Vidas secas, de Graciliano Ramos. Nesse romance, o autor alagoano concebe Fabiano, um personagem que teve sua capacidade comunicativa cerceada pela miséria e pelo ambiente rude. Devido a essa limitação, não apenas seu potencial de expressão ficou comprometido, como também sua capacidade de demonstrar afeto. Assim, o relacionamento entre ele, sua esposa e seus filhos era mantido mais à base de gestos e muxoxos, ficando os sentimentos presos, tolhidos, o que sem dúvida, tornava suas vidas tão secas quanto o solo pedregoso em que viviam.
Clarice Lispector é outra escritora que usa metalinguagem como temática e força motriz de sua obra. Para ela, as palavras não bastam para alcançar o que deseja: ela aspira ao inexprimível. Mas até para isso, é forçoso usar as palavras. E ela as exercita com tanta maestria que seu discurso sedutor é, e sempre será, objeto de inúmeros estudos interpretativos. Assim como Clarice, inúmeros outros artistas da palavra vêm se debruçando sobre a própria linguagem a fim de extrair-lhe sua mais alta carga de densidade evocatória. Não estão buscando um enfeite textual, estão criando linguagem apaixonada, capaz de despertar sensibilidades, iluminar olhares, instigar emoções.
E por falar em palavras, leia a seguir, o texto O vendedor de palavras, de Fábio Reynol.
Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma ideia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.
Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinquenta curiosos parasse e perguntasse.
— O que o senhor está vendendo?
— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinquenta centavos como diz a placa.
— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
— O senhor sabe o significado de histriônico?
— Não.
— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
— O senhor tem dicionário em casa?
— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
— O senhor estava indo à biblioteca?
— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinquenta centavos de real!
— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?
— O senhor conhece Nélida Piñon?
— Não.
— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
— E por que o senhor não vende livros?
— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário
em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
— Jactância.
— Pegar um livro velho...
— Alfarrábio.
— O senhor me interrompe!
— Profaço.
— Está me enrolando, não é?
— Tergiversando.
— Quanta lenga-lenga...
— Ambages.
— Ambages?
— Pode ser também evasivas.
— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
— Pusilânime.
— O senhor é engraçadinho, não?
— Finalmente chegamos: histriônico!
— Adeus.
— Ei! Vai embora sem pagar?
— Tome seus cinquenta centavos.
— São três reais e cinquenta.
— Como é?
— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
— Tem troco para cinco?
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