sexta-feira, 15 de abril de 2011

POLISSEMIA

POLISSEMIA E AMBIGUIDADE NA CONSTRUÇÃO DOS TEXTOS


TEXTO 1: Amor ou Ódio???

Satânico é meu pensamento a teu respeito e ardente é o meu desejo de
apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que
me fizeste ontem.
A noite quente e calma chegara a ser angustiosa.
Apareceste e, nesta cama, aconteceu...
Sorrateiramente te aproximaste...
Sem o mínimo de pudor... Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu.
Percebendo minha aparente indiferença, aconchegaste-te a mim e
mordeste-me sem escrúpulos até os mais íntimos lugares jamais tocados
de meu casto corpo.
E adormeci...
Hoje, quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão...
Deixaste
provas irrefutáveis do que ocorreu na noite que passou.
Grandes manchas no meu corpo e o alvo lençol salpicado de sangue...
Esta noite recolho-me mais cedo para, na mesma cama, te esperar.
Oh! Quando chegares, nem quero pensar com que perspicácia, avidez e
força eu quero te pegar para que não escapes mais de mim.
Em minhas mãos quero apertar-te até o fim.
Não haverá parte do teu corpo que os meus dedos não passarão.
Só descansarei quando ver sair o sangue quente de teu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti, pulga maldita.

( Não conheço o autor)

O texto conduz o leitor a imaginar tratar-se de uma relação entre duas pessoas, quando, na verdade, apenas fala de uma pulga. Após a leitura, percebe-se que os verbos escolhidos possibilitam a polissemia:

Apareceste e, nesta cama, aconteceu...
Aconteceu = fazer amor
Aconteceu = algo ocorreu
Em minhas mãos quero apertar-te até o fim.
Apertar-te = abraçar
Apertar-te = sufocar, esmagar


Observe agora no texto abaixo, como a polissemia da palavra “aquilo” foi usada para gerar a ambiguidade textual.

Texto 2:       Aquilo - Luís Fernando Veríssimo

— De uns tempos para cá, eu só penso naquilo.
— Eu penso naquilo desde os meus, sei lá, 11 anos.
— Onze anos?
— É. E o tempo todo.
— Não. Eu, antigamente, pensava pouco naquilo. Era uma coisa que não me preocupava. Claro que a gente convivia com aquilo desde cedo. Via acontecer à nossa volta, não podia ignorar. Mas não era, assim, uma preocupação constante. Como agora.
— Pra mim sempre foi. Aliás, eu não penso em outra coisa.
— Desde criança?!
— De dia e de noite.
— E como é que você conseguia viver com isso, desde criança?
— Mas é uma coisa natural. Acho que todo mundo é assim. Você é que é anormal, se só começou a pensar naquilo nessa idade.
— Antes eu pensava, mas hoje é uma obsessão. Fico imaginando como
será. O que eu vou sentir. Como será o depois.
— Você se preocupa demais. Precisa relaxar. A coisa tem que acontecer
naturalmente. Se você fica ansioso é pior. Aí sim, aquilo se torna uma angústia, em vez de um prazer.
— Um prazer? Aquilo?
— Pra você não sei. Pra mim, é o maior prazer que um homem pode ter.
É quando o homem chega ao paraíso.
— Bom, se você acredita nisso, então pode pensar naquilo como um prazer. Pra mim é o fim.
— Você precisa de ajuda, rapaz.
— Ajuda religiosa? Perdi a fé há muito tempo. Da última vez que falei com um padre a respeito, só o que ele me disse foi que eu devia rezar. Rezar muito, para poder enfrentar aquilo sem medo.
— Mas você foi procurar logo um padre? Precisa de ajuda psiquiátrica.
Talvez clínica, não sei. Ter pavor daquilo não é saudável.
— E eu não sei? Eu queria ser como você. Viver com a perspectiva
daquilo naturalmente, até alegremente. Ir para aquilo assoviando.
— Ah, vou. Assoviando e dando pulinho. Olhe, já sei o que eu vou fazer. Vou apresentar você a uma amiga minha. Ela vai tirar todo o seu medo.
— Sei. Uma dessas transcendentalistas.
— Não, é daqui mesmo. Codinome Neca. Com ela é tiro e queda. Figurativamente falando, claro.
— Hein?
— O quê?
— Do que é que nós estamos falando?
— Do que é que você está falando?
— Daquilo. Da morte.
— Ah.
— E você?
— Esquece.

Veja um exemplo de polissemia num teste de racismo:

Num galinheiro havia 30 galinhas.
Um negão levou 10 galinhas.
Quantas galinhas ficaram no galinheiro?

Resultado:
Se você respondeu 20 galinhas: você é racista.
Se você respondeu 40 galinhas: parabéns!
Se havia 30 e o negão levou (mais) 10, ficaram 40 galinhas.

O teste levou em conta que verbo levar pode ser entendido de duas formas: levar como furtar ( para o “racista”) ou levar como dar algo.

O verbo “levar” possui muitos outros sentidos. O dicionário Houaiss eletrônico registra alguns:
a)      carregar consigo: sempre levava seus documentos na carteira.
b)      Afastar de um local: levou dali o desordeiro.
c)      Vestir: levava um roupão de seda sobre o pijama.
d)     Ser alvo de um castigo: se esse menino não ficar quieto, acaba levando.
e)      Ter na memória: levava saudades ao partir.
f)       Carregar o peso, aguentar: levou toda a responsabilidade do erro.
g)      Demorar: levou horas para se vestir.
h)      Considerar: leva tudo na brincadeira.
i)        Receber: levou uma quantia enorme naquela transação.
j)        Conter: é necessário que o documento leve a assinatura do diretor.
k)      Matar: a bebida o levou.
l)        Servir de meio de transporte: o aqueduto levava água à cidade.
m)    Entregar algo: levou-lhe boas notícias.
n)      Apresentar, exibir: o Teatro Municipal vai levar O Auto de Mofina Mendes.
o)      Viver: levava a vida de um rei.


" O bom leitor lê sentidos. Quanto mais a criança se apegar ao sentido, melhor leitora ela será." (Marina Colasanti)

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