O enfermeiro Procópio conta que teve uma vida cheia de acontecimentos, mas o que mais o marcou deu-se em 1860, quando tornou-se cuidador de um coronel idoso que lheu deu muito trabalho. De bom grado, ele aceita narrar a história para um livro, mas com a condição única que não seja divulgada antes de sua morte, que acredita próxima. Compreende-se a preocupação de Procópio pelo fato de ele narrar em detalhes algo que, se não poderia comprometer sua liberdade, poderia ao menos manchar a boa reputação em que viveu.
O coronel era um osso duro de roer e Procópio não fazia ideia. Quando chega ao novo emprego é que começa a ter notícias do coronel: insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Mas era tarde para voltar para casa e, além disso precisava de dinheiro e acreditava em sua capacidade de “amansar a fera”. Até o vigário recomendou mansidão e cautela, o que prova o aspecto temperamental do velho.
A recepção também não foi nada cordial: o coronel pergunta se Procópio é gatuno e faz pilhéria com o nome dele. Mas o enfermeiro mostra-se gentil, prestativo e, por isso, até ganha elogios do coronel perante o vigário. Mas aquela harmonia, que ele chama de lua de mel, só dura sete dias.
O coronel começa a tratá-lo mal e a ocupar-lhe em demasia. Por causa de uma bengalada, ele decide ir embora, mas o velho, esperto, suplica que fique e Procópio deixa-se vencer pelos rogos. Os insultos continuam e Procópio consegue se fazer de indiferente. Não que fosse mártir, ele bem que tentava sair da função, mas o vigário o demovia de ideia porque o velho não tinha parentes no mundo e estava no fim da vida. Procópio confessa que um fermento de ódio latejava-lhe no coração e apenas esperava uma ocasião propícia para voltar à Corte e esquecer o coronel. Antes que ela surgisse, aconteceu um evento que mudou sua história: a morte do coronel. Ele arremessa uma moringa no enfermeiro enquanto este dormia. Num acesso de fúria, Procópio atira-se contra seu ofensor, luta e consegue esganá-lo. Ao perceber o que acabara de fazer, Procópio se assusta com a própria reação: ele matara o homem a quem deveria cuidar. Tanto desvelo, tanta paciência, mas agora tudo em vão: não conseguira aguentar a última provocação violenta do coronel. O que deveria fazer? Ele fica desnorteado. Sua consciência aturdia, macerava. Essa zoeira na mente é mostrada magnificamente nas passagens: Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava uma vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!
Mas o pungir da consciência foi interrompido por uma preocupação prática e terrível: havia um cadáver em seu poder e teria que explica a todos o que acontecera quando o dia amanhecesse. E agora? Mesmo com receios, Procópio diligencia tudo com cuidado e consegue permanecer insuspeito. O que não consegue é desvencilhar-se da culpa. E por causa dela começa a idealizar o coronel, elogiando-o e rezando missa. Não lhe interessava apenas convencer os homens de sua sinceridade, ao fazer isso, queria convencer a si mesmo. Até receber com susto a notícia de que herdara tudo do coronel. Parecia-lhe hediondo auferir um vintém que fosse do homem que matara. Procópio cogita dar tudo aos pobres, pois caso recusasse, poderia levantar suspeitas. Parecia determinado em seu propósito de benevolência, mas algo acontecia em seu interior. E ele parecia perguntar-se: afinal o que realmente acontecera? Teria realmente culpa no que se passou? Não teria o velho morrido do aneurisma que arrebentara no exato momento da luta? Não iria arrebentar de qualquer maneira naqueles dias? Talvez o momento tivesse apenas coincidido. Assim, a culpa não era dele. O coronel nem viveria muito e padecia de muitas mazelas, a morte até foi uma saída para a vida que levava. Ele racionalizava a situação enquanto convencia-se da própria inocência.
Sua consciência ganha um presente extra: todos na vila, comentavam sobre a rabugice do coronel e do quanto era insuportável e mau. Procópio ouvia “com prazer” as histórias escabrosas sobre o velho. Eram histórias que não só aliviavam, mas até o redimiam, pois diante daquela personalidade monstruosa, quem aguentaria não esganá-lo?
Os dias foram passando, a ideia de doar tudo aos pobres parecia-lhe “uma afetação”. Procópio salda simbolicamente a dívida com o morto mandando-lhe fazer um túmulo de mármore. O dinheiro que o velho deixara lhe traz um contentamento que suaviza sua vida. Na suavidade dessa nova vida, por que remoer o passado? Assim, ele crê que o dinheiro consola muitos males e solta a frase que encerra seu segredo de vida: “bem-aventurado os que possuem porque serão consolados”.
Nesse conto, Machado de Assis expõe brilhantemente sua capacidade de vasculhar a consciência dos personagens a partir do detalhe. O narrador confessa: Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o. Mas quer convencer o leitor de que não teve alternativa, fez isso apenas pelo ímpeto da legítima defesa. Mostra-se também arrependido, aceitando qualquer penitência: E Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas por outro lado, não se pode esquecer que Procópio já alimentava o que ele chama de “ fermento de ódio e aversão”. Então até que ponto a reação do enfermeiro foi tão impensada como ele assevera? Quanto tempo teria durado essa luta? Por que Procópio não percebeu que estava matando o velho? Se o coronel era de idade e doente, por que para revidá-lo, teve que lutar? E as vozes e vultos que ameaçaram a consciência de Procópio? Atestariam sua dor pela morte do velho ou apenas a culpa pela vazão enorme que dera ao seu ódio? São perguntas que ficam no ar.
Outro aspecto magistral do conto é a reação interna de Procópio: Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Adentramos na própria consciência do personagem, sabemos que temores o perpassam e cada detalhe que o incomoda. O que para as pessoas em geral é interpretado como a dor que estava sentido, para o leitor é revelado que se trata de insegurança e receio das suspeitas que pudesse levantar.
Mas nada se compara ao processo de racionalização da culpa. Machado mostra como um homem consegue cauterizar a própria a consciência com sucesso. Pequenos atos de bondade, justificavas pessoais, benesses do dinheiro, ação do tempo, tudo isso foi faxinando as lembranças, tornando o passado como algo remoto e sem importância. O conto é ferinamente humano em seus implícitos: tudo consegue o homem superar, apagar, quando lhe convém e o dinheiro vem ajudar.